sábado, 17 de março de 2012

Exercício do olhar


Gosto de poesia porque ela depura o olhar. Os poetas deveriam oferecer consulta para miopia da alma. É a pior que existe. Não perceber poeticamente o mundo é estar atolado nele, sufocado pelo peso imenso de uma realidade extremamente exigente e opressora. Quem fala isso é o Mário Quintana: Quem faz um poema abre uma janela./ Respira, tu que estás numa cela abafada,/ esse ar que entra por ela./ Por isso é que os poemas têm ritmo/- para que possas profundamente respirar./ Quem faz um poema salva um afogado. A linguagem poética liberta a palavra de seu uso corriqueiro de suas heranças discursivas, abre janelas, possibilidades de novas percepções do mundo, potencializando a capacidade de administrar e transformar os sentimentos, a vida.  
            Você deve estar pensando que esse assunto nada tem a ver com Teologia ou bíblia. Preocupante engano, queridíssimo leitor. A linguagem poética está presente em toda a Bíblia. A poesia aparece nas narrativas, nos salmos, nos livros sapienciais (Cantares, Eclesiastes, Jó), e nos livros proféticos. No Novo Testamento, está presente principalmente nas palavras de Jesus, o poeta camponês. Esses escritores do Antigo Testamento e Jesus tinham plena consciência de que a revolução do espírito humano deveria passar pela revolução da palavra. Por isso, tornaram-se precursores e mestres da linguagem metafórica, comparativa, poética. Compreendiam o peso da opressão em seu mundo e abriam janelas para o povo respirar.
            Um exemplo muito claro disso é a belíssima maneira como Jesus ressignificou o conceito “reino de Deus” ou “reino dos céus”. A herança discursiva dessa expressão era poderosíssima em sua época, pois traduzia longas expectativas político-militares de dominação. Para libertá-la de seu significado cristalizado e transformar seus ouvintes, Jesus improvisou alguns poemas-parábolas: “A que é semelhante o reino de Deus, e a que o compararei? É semelhante a um grão de mostarda que um homem plantou na sua horta; e cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu aninharam-se nos seus ramos (Lc 13,18-19).”
            Por que Jesus não foi direto ao ponto? Por que não apresentou claramente seu conceito de reino de Deus? Porque pretendia conduzir o homem à percepção cristalina da presença libertadora de Deus na vida. Por isso, suas palavras e vida produziam o olhar da transparência. Além de abrir os olhos de seus ouvintes, Jesus queria com sua poesia enternecer, comover, tocar o ponto mais profundo da motivação humana. Que bela imagem a do reino de Deus como semente e árvore, onde os passarinhos podem se abrigar! Que alegria, que profunda motivação a parábola deve ter evocado no coração dos contemporâneos de Jesus, habituados e oprimidos pela visão de um Deus punitivo e discriminador!
            Se a linguagem e a perspectiva crítica da poesia são tão presentes e importantes na bíblia, por que o discurso religioso na Igreja Presbiteriana do Brasil está tão distante dela? Por que esse apreço pela repetição eterna das mesmas formas doutrinárias? A resposta não é simples, mas vamos nos arriscar a sugerir uma pequena parte dela. O discurso teológico de nossa amada IPB – e da maioria das instituições religiosas cristãs - repete insistentemente as mesmas formas doutrinárias, porque estas sustentam uma estrutura institucional e seus espaços de poder. É exatamente por isso que a teologia passou da linguagem literária (bíblica) para a dissertativa ou descritiva.
            As instituições naturalmente criam suas estratégias de manutenção e é natural e necessário que o façam. Mas quando elas silenciam as vozes poéticas, discordantes, provocadoras impedem a manutenção saudável e a transformação sadia de suas estruturas. Por que sempre os mesmos palestrantes em nossos congressos nacionais? Por que os mesmos articulistas em nosso site e jornal? Por que sempre a mesma forma discursiva e os mesmos pontos de vista? Por que as mesmas posições sobre o trabalho feminino nos órgãos oficiais? Onde estão as vozes proféticas de nossa igreja? Se elas são silenciadas sutilmente, é porque deixamos de ser essencialmente uma igreja Protestante.

Um comentário:

  1. Acredito que o problema passa justamente pela situação de que os lideres são os principais interessados em sustentar as estruturas institucionais, e precisaria vir deles as mudanças, porem o medo os impedem.

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