terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Principio Protestante e o Protestantismo Histórico

O protestantismo histórico, nascido sob o ideal de liberdade pregou através da doutrina do Sacerdócio Universal de Todos os Crentes, que todo crente deveria ser livre para ler e interpretar o texto bíblico sugerindo a possibilidade da autonomia do fiel, para que este vivesse a fé de acordo com a consciência pessoal e não de maneira subserviente a uma instituição específica. Não obstante essa aspiração, na medida em que o protestantismo se concretizou, o ideal de liberdade se fragmentou dando lugar a cerceamentos por meio de mecanismos repressivos e inquisitoriais (característicos do obscurantismo contra o qual se opôs), que de certa maneira permanecem incorporados nele até hoje, como parte de seu modus vivendi. Com isso, o protestantismo, apesar da origem firmada no ideal de liberdade, se viu destituído da elasticidade necessária para sustentar os desdobramentos dele decorrentes; recorreu, assim, a mecanismos preventivos e defensivos a fim de preservar uma tradição que, não obstante o discurso original, acabou se constituindo como suficiente, infalível e final, gerando em si aquilo que outrora tentou eliminar em sua eclosão: a absolutização institucional.
Em seu livro Dogmatismo e Tolerância, ao tratar da relação entre protestantismo e comunidade, Rubem Alves recorre ao pensamento de Paul Tillich e faz uma intrigante afirmação: “talvez seja a hora de decidir pelo principio protestante, em oposição ao protestantismo histórico”. Intrigante por que essa afirmação nos leva a questionar: “O que vem a ser esse princípio protestante que se coloca como opção ao protestantismo histórico?” É preciso entender que, por “princípio protestante”, não se faz referência a um conjunto de dogmas, alguma confissão de fé em particular ou uma formulação teológica específica; tampouco o termo se refere a outro caminho, desvinculado da instituição. Por “princípio protestante” devemos entender o espírito de inconformidade que, presente na igreja no decorrer de sua história, foi e é responsável por fomentar transformações e resistir a todo tipo de abuso em que a instituição pode incorrer ao perder seu referencial. É a consciência ativa que se manifesta diante da absolutização do que é relativo, a voz profética, como os profetas do AT, por meio da qual “Deus, de dentro da religião,fala contra a religião.”
Assim, a opção pelo “princípio protestante” não significa deixar a instituição e seguir outro caminho, mas permitir que a força do Evangelho seja o crivo pelo qual nos medimos constantemente. Na prática, isso significa, como afirma Rubem Alves, a “vigilante oposição a todas as formas de absoluto, seja conhecimento absoluto, seja instituição absoluta, seja poder político absoluto...”; significa também não se dobrar às exigências do mercado evangélico, que em nome da interlocução com o mundo pós-moderno cria modismos vazios e repete as velhas fórmulas com novas roupagens; significa manter aquele sonho teimoso (utopia) de fazer da igreja um espaço de liberdade, de crescimento e de ampliação de horizontes e não subserviência à mera repetição do senso comum; significa o esforço por direcionar a ação da igreja para o mundo onde ela deve cumprir com seu chamado profético e diaconal; significa ainda a opção pela leitura honesta do texto sagrado, movida por um coração realmente desejoso de ouvir a voz de Deus que fala por meio dele. Enfim, o “princípio protestante” é a consciência norteadora que se opõe à absolutização institucional e que mantém acesa na igreja a consciência de sua verdadeira vocação.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Estamos mesmo dispostos a continuar nos reformando?


             Em uma de suas várias entrevistas, o teólogo católico Leonardo Boff afirmou que uma das acusações que lhe foram lançadas pelo Vaticano por ocasião do processo eclesiástico desencadeado pelo seu livro Igreja, carisma e poder foi a de que suas posições eram “protestantes e não católicas”. Quem leu o livro sabe das duras críticas que Boff lançou contra a constituição hierárquica da igreja, a concentração de poder na mão dos sacerdotes, a discriminação contra as mulheres no serviço eclesiástico. O que me chamou a atenção em sua entrevista, no entanto, foi a convicção dos católicos de que, na seara protestante, haja mesmo espaço para a postura crítica contra a própria instituição.
             Isso porque, pelos artigos que leio no jornal da denominação, em blogs de membros da Igreja (um dos quais fornecedor constante de artigos para a página eletrônica desse mesmo jornal), no programa Verdade e Vida, tenho a impressão de que há uma vigilância permanente contra qualquer mínima evidência do que possa ser considerado um desvio da norma, um alerta constante contra ideias que divirjam daquelas mais cristalizadas, uma ânsia por “enquadrar” o autor de uma crítica mais incisiva. Observo, em suma, um cenário em que a crítica não é bem vinda, e isso, é preciso dizer, é um mau sinal.
            Erigida sob o princípio reformado de que a igreja deve estar sempre disposta a se reformar, a Igreja Presbiteriana do Brasil deveria ser a primeira a reconhecer que essa reforma constante só pode brotar em ambientes de livre crítica, em que aqueles que ousam divergir da norma predominante não sejam vistos com desconfiança, mas acolhidos como elementos importantes para o dinamismo da instituição.
          As perguntas que lançamos a seguir podem servir como elementos para um diagnóstico: que acolhida estamos dispostos a dar, enquanto presbiterianos, àquele que defenda a ordenação feminina e aponte em sua negação uma discriminação contra o sexo feminino? O pastor que opte por outros métodos de interpretação bíblica que não o histórico-gramatical será olhado com simpatia por seus colegas que não abrem mão dele? Uma proposta de adoção de outras confissões de fé ou mesmo de revisões periódicas no corpo doutrinário adotado oficialmente pela igreja serão acolhidos como elementos importantes para a sanidade confessional da igreja ou receberão, antes, a ameaça da punição por desvio de conduta?
            O olhar desconfiado para as perguntas acima é revelador de uma situação que moldou com o tempo o modo de ser das igrejas reformadas, entre as quais a IPB se inclui: apesar do que diz nosso discurso, na prática não queremos nos reformar. Não gostamos de ser contrariados e não estamos dispostos a aceitar sob a mesma placa denominacional qualquer um que fuja às normas já estabelecidas.
            Não achamos que a menção às disposições legais previstas na Constituição da Igreja para a possibilidade de propor reformas seja suficiente. Falamos, antes, de um clima perceptível em debates, de um tom bastante agressivo em direção à diferença, de uma falta de espaço para a pluralidade de ideias, discursos, leituras, propostas. A IPB parece cada vez mais enrijecida em seu modo de ser. Onde fica, nela, o espaço para que se reforme? Não é necessariamente a impossibilidade legal da mudança o cerne do problema (embora a Constituição da Igreja seja bastante conservadora quanto a essa possibilidade), mas a ausência de um ambiente de livre manifestação de ideias.
            Na prática, agiríamos diferentemente da Igreja Católica se um de nossos membros escrevesse um livro criticando algumas posturas na IPB, como as elencadas acima (ordenação de mulheres, métodos variados de interpretação, discussão de aspectos doutrinários), as quais, diga-se, são apenas exemplos pinçados de exemplos que podem ser dobrados, quiçá multiplicados?
            Na época da Ditadura Militar no Brasil, ficou famoso o slogan que dizia “Brasil: ame-o ou deixe-o”. A mensagem era bastante clara: não pense em transformá-lo. Esses, no entanto, que queriam transformar o Brasil, nutriam um grande amor pelo seu país. Não vivemos uma ditadura na IPB, felizmente, mas o clima de desconfiança para com quem deseja transformações em seu meio não faz jus ao amor que todos, não apenas os conservadores, nutrem por ela.